sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A domesticação das asas

                                A DOMESTICAÇÃO DAS ASAS

quando a chuva tocar a terra
as aves saberão despertar da agonia estival
os temperos rupestres hão-de exalar
os odores recomendados
pelos sete sábios da Grécia Antiga

aguardemos que as figueiras excêntricas,
antes do vicejar dos frutos apetecíveis,
descerrem por fim as alvas flores de lírio
e que nos seus ramos engatilhados
sejam proibidas aquelas cordas submissas
onde se penduram homens de pele baça
no temor de um futuro
açulado por cães proscritos e lazarentos

com o chão bêbado pela água baptismal
tu irás recuperar as asas sedentárias
para te aconchegarem
- é certo que contrariada-
na tepidez monótona do meu regaço,
o teu peito libertando um desditoso queixume

depois, ao fazermos um amor sereno
proibidas todas as pressas
vasculhamos as pregas recônditas dos nossos corpos
beijamo-nos nas salivas das bocas acossadas
e
de olhos cheios recusaremos os vendavais inúteis

hei-de ler-te então um parágrafo
daquela perpétua, serena  e leal afeição
tal como  a quero e conjecturo
(estou a pensar em Corin Tellado, porque não?)

é certo que tu, meu bem-amar,
desejavas tão-somente
consumir-te  nos versos desinquietos
da Natália insubmissa,
esses versos onde o amor fiel e perpétuo
por demasiado tacanho
não cabe

         in Poesia dos Objectos Inúteis (2014 - Novembro)

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Enquanto navegávamos


               Enquanto Navegávamos

           O Centro Dramático de Viana mantendo a estratégia cultural de abertura à comunidade vianense, não só pegando em temáticas que dizem respeito às vivências da cidade como também incentivando a participação de actores amadores (os que amam o teatro, pois claro) levantou este “Enquanto Navegávamos”. O desafio não podia ser mais perigoso. Estamos a falar de um elenco que sendo apenas todo amador,- com  os riscos que o amadorismo pode trazer a terreiro - constituído por nove ex-operários calejados e duros que possivelmente nunca terão visto teatro em toda a sua vida. Foi então com esta “massa bruta” que se ergueu o espectáculo que resumidamente trata a vivência dos estaleiros desde as suas origens nos longínquos anos 50 até ao momento em que a empresa doridamente se afoga.
          Só que os encenadores (Ricardo Simões e Guillermo Tello) jogaram com todos os trunfos que tinham à sua disposição, dando, estrategicamente, um brilho maior à arquitectura do espectáculo no seu todo e não tanto às debitações dos actores. E esse trunfos passaram por 1) uma forte utilização dos adereços saídos da teia, (dois dos momentos mais belos resultaram daqui) 2) uma marcação de palco que explorava e bem as profundas de todo o espaço cénico - fazendo lembrar a imensidão dos estaleiros e até da própria “Coreia” (interessante expressão do calão operário referindo-se à distante guerra da Coreia), 3) a música de cantores que todos conhecemos e que fazem parte da nossa memória, 4) uma excelente arquitectura de luzes, delimitando espaços, momentos, emoções. A surpreendente cena final, a melhor de todas, resulta daqui, com o grupo simbolicamente a “afundar-se” até ao sub-palco 5) utilização do proscénio e entrada dos actores pela assistência 6) sequências de pura expressão corporal. 7) A marcha insistente,  repetida e longa (outro momento muito belo) para marcar o 25 de Abril, fugindo à estafadíssima Grândola que neste momento serve para tudo.  8) E nessa cena final evitando uma sequência panflaeária de punho no ar e mais Grândola.
  Só faltou na esteira do melhor teatro sul-americano uma canção final, quando os actores surgem para receber o  prémio sem preço: os aplausos acalorados do público, com repetidas chamadas ao palco.
           Gostei de tudo? Não. Houve momentos de uma certa monotonia, a dicção destes operários duros nem sempre foi a melhor, embora tenham partido muito pedra (é certo que já vi disto em alguns profissionais, portanto…). O quadro arrastado dos “adeuses” aos barcos saindo doca foi longo e monótono. Além de ver uns operários  com a cara escanhoada e lisa como mármore.
            Mas é um espectáculo digno e portentoso, que preenche a alma de quem gosta de teatro com momentos muito bons de pura beleza e alguma inquietação.