segunda-feira, 28 de março de 2016

UM SMS LÁ PARA CIMA (inédito)



                          
            
                                    UM SMS LÁ PARA CIMA

                                há coisa de dois meses enviei  a Deus este  SMS:
     
               LUVE, TMUS D FLAR ;)
         OD TÁS? NO XEU? 
         TOU PROKUD PRA CRAXAS
         PRCISO FLAR CONTGU
         SBES OD ME ENCNTRAR
         SMPRE NO MMO SITIO OD TOU AGRA
         TENHO SAUDDES TUAS:)
         BJS ¨ 

              Nunca recebi resposta que entretanto mudei de operadora
              Ninguém avisou DEUS  da mudança, foi o que foi.

terça-feira, 15 de março de 2016

OFÍCIO (inédito)

                                      OFÍCIO


Virar pedras, descobrir versos
e
não achar nada.

Este é o meu trabalho
para tocar a poesia,
exalada pelo bafo divino das musas 
ocultas no chão do Parnaso.

Às vezes
dou com Deus em ruínas,
acocorado sob um chão de calhaus,
temendo os desaforados apelos
que Lhe perturbam a limpidez
dos dias da Criação.

                          Ele não me deslumbra.
                          Difícil mesmo é ser poeta.

LEVANTAR UM POEMA (inédito)









sem que alguma vez
um Deus sabedor me tivesse dado
uma imperecível e leve mão,
ou indicado o caminho anguloso dos poliedros,
atiro-me às sensíveis tábuas de insolúvel madeira,
aos anéis em ferro temperado,
e passo tudo pelo fogo alquimista.
                                                        q.b.

sou isto:
um tanoeiro de versos
a levantar um poema
como o artesão a compor uma vasilha.

O HOMICÍDIO DAS MÃES (inédito)





                                  enquanto espero que surjas
                 com tuas mãos à descoberta de mim,
                 o meu olhar ilíquido trespassa do rio
                 a neblina,
                 nas águas amargas do Lima.

                         imóveis nos seus dóris,
                  é de pontiagudas fisgas acesas
                   que os corsários aguardam
                   a passagem das ofegantes lampreias,
                   prenhes de futuro e destino  por  fazer                              
                    e eu faço figas rigorosas
                    para o sucesso do fracasso
                    que há-de inscrever-se
                    na abordagem da pirataria.

                                continuo por aqui, nesta margem,
                    como se obedecesse a um dever primordial
                    (não há-de ser debalde a minha fé)
                     enquanto não chegas de sapatilhas apressadas.

                                         na armadilha do rio,
                                          o homicídio das mães.
                    
                    
                

sexta-feira, 11 de março de 2016

PERTO DO CORAÇÃO NAUFRAGADO (inédito)



                     PERTO DO CORAÇÃO NAUFRAGADO
                                   ( no dia internacional da mulher e dedicado à Virgínia Woolf)



                  Esperou que marido e filho acabassem de  comer. Naquele dia tinha-se esmerado na preparação de um jantar festivo, consumira um bom par de horas, num rodopio labiríntico entre o forno, a varinha mágica e o liquidificador. Metera até uma falta no escritório para que a confecção do jantar tivesse o deslumbramento dos deuses. Aquele dia era também o seu dia.
               Vi-os depois levantarem-se da mesa, o bolo comemorativo ainda mastigado à pressa, o filho direito ao quarto onde se embrenharia na atracção do portátil e o marido a preparar-se para ir até ao café. Nessa noite jogava a sua equipe de futebol e ele juntava-se ritualmente aos seus camaradas clubísticos numa exaltação de circo romano.
                   Sozinha, deitou os restos de comida no lixo - o que não era seu hábito, sempre cuidadosa nas poupanças -lavou a  loiça, e sentou-se à mesa a fumar um cigarro. Um silêncio fúnebre envolveu-a e sentiu de novo aquele gélido arrepio de perturbação que há uns tempos lhe vinha mordendo o pensamento: "Que estava a fazer naquele lar?".
                  Já no quarto preparou uma pequena mala com a roupa essencial e produtos de higiene, e desandou porta fora sem olhar para trás ou sem um mínimo de remorso. Meteu-se num táxi que a deixou no outro lado na cidade num hotel de circunstância e medíocre,  disfarçada com uns óculos escuros e o cabelo para os olhos. 
           Sentou-se na cama sem nunca despir a roupa que usava, lendo "Mrs. Dalloway" de Virginia Woolf. Dias depois, tendo chegado ao fim da imperiosa leitura, partiu de comboio para Espanha, atravessou os Pirenéus e Mancha só parou em Inglaterra.  
Só voltou ao lar trinta anos depois, quando soube que o seu único filho iria morrer de sida.



terça-feira, 1 de março de 2016

A PALAVRA INAUGURADA (inédito)







                                           A PALAVRA INAUGURADA


este deixou de ser o tempo da palavra.
denegriram-na os alquimistas da fala
com os seus discursos de estrelas liquefeitas.
traída a palavra nas bocas donde se soltam varejeiras
de azulado dorso, abro a tampa do poço
onde guardo os meus berlindes
e deixo a memória inaugurar a linguagem dos pássaros.


SALOMÉ (inédito)




                                                                      




                                                                     SALOMÉ

                        é certo, Salomé, que pediste a minha cabeça numa bandeja, mas isso foi muito depois de te conhecer naquele primeiro orvalho do Inverno.
                       até aí, pela tua mão, teci a luz dos salmos,
por ti roubei o luar que afaga o piar dos pássaros sensatos no quadro da noite. fui chuva improvável no deserto das sombras, e insisto, por ti fui capaz de fazer lume para aquecer a indiferença dos altares.
               mas também pela tua mão, Salomé,
conheci a fome que devora o rosto, a peste do medo,
as pústulas mais sórdidas da carne.
              pela tua mão fui capaz de matar como velhas loucas de cabelos furiosos e facas em riste.
              isto foi ontem, Salomé, quando pediste
           a minha cabeça numa bandeja.
assim seja.
ao terceiro dia, a ressurreição.
a minha.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A NATURAL MUTAÇÃO (inédito)





                               A NATURAL MUTAÇÃO

É-me difícil calcular a  insubmissão da tua alma quando naqueles dias  em que vestes de volúvel inquietude, traças um rumo que não entendo. O teu rumo é minha teia pois há perguntas que gostaria de te fazer e há prenúncios de respostas que temo. Podíamos inventar uma ode marítima e fazer uma íntima navegação para lá de qualquer geografia, onde o anoitecer não fosse mais que uma ave poisada na sobretarde. Então, como sei que contigo me desperdiço, trato de me recolher ao húmus confortável da floresta, e como lagarta que enjeita a  natural mutação, penetro na dulcificada letargia da sexta dimensão.
É que a mim mal me adapto, quanto mais a ti que te negas abandonar esse imprevisível reino onde governas, sem catavento e sem os deuses ancestrais do bom senso.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A COMUNICAÇÃO DE GABRIEL (inédito)




entre o sonho, o sono e alegoria,
ouviu Maria a voz de Gabriel roçando-lhe o ouvido.
foi um zumbido, um cair tímido de folha outonal
mas o bastante para entender
que ela d´outro e d'ouro emprenharia.

o luar era quente,o vento arquejava
como se nascesse nas fornalhas do cataclismo.
teria ouvido mal? deveria acreditar na voz dos anjos?
afastou o sono das pálpebras,
atravessou a noite com uma vela na mão
e um pensamento a morder-lhe
a paz de mulher quotidiana e desambicionada.

que havia de pensar José?
seu marido era um velho indulgente,
com serrote, régua e golpe de vista punha a parca comida na mesa.
e sabia beijá-la, nela colocar os olhos de lento agradecimento.
quando a tomava em aconchegos de amor
fazia-o com a suave ternura a quem os muitos anos de vida
deram a sabedoria dos deuses.

Maria, com o desabrochar da claridade,
atirou-se ao chão em terra da árida Judeia
e implorou a Adonai, o deus da sua infância de judia,
que os seus sangues fêmeos não lhe faltassem na lua-cheia.

meses depois, suportando uma angustiada espera,
o sol brotou das suas entranhas como um forasteiro indesejado. 

contudo, para a desabrigada,
o céu ensombrava-se com a mais negra negrura da mortificação.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A MENTIRA DO POETA (inédito)



                         o poeta sente o que sente
                         e
                         sabe que mente
 
                        a dor de criar gera-se na mente
                        no minucioso esforço do olhar rente
                        o verso, sempre o verso,
                        bem mastigado, digerido a quente

                       poesia é isto
                       alegoria
                       espelho
                       memória alerta
                      
                        a busca do obstinado rigor
                        a matar o poeta
                                               lentamente


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

A EMPRENHADA



                                                            A EMPRENHADA
                              


                    com aquelas dores que incendeiam os astros, 
                   a mulher carregava em seu ventre
                                                        o escolhido.
                   e o burro caregava os dois
                   sua passada era mansa,
                   e fulgente o pó do caminho.
                                  isto foi um pouco antes do do tempo
                   que o tempo só teria início
                   quando a emprenhada parisse numa gruta,
                    devastada pelas dores,
                                           os sangues
                                                         o mijo.

                                 depois do primogénito
                    outros nasceram
                    mas aquele primeiro
                    guardava-se  no coração da mãe
                    como a esquiva chuva que cai na Judeia.
                   
                    trinta e três anos após o início do tempo,
                    o escolhido pediu a ajuda ao pai
                    quando se viu pregado no madeiro.
                    e o silêncio sem resposta
                    era um grande monstro.
                     
                     como entender que não tenha chamado
                     pela mãe?

                     o dia morria
                     e a tarde anunciava o crepúsculo de Deus.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

DEUS NO SAPATO (inédito)






                               aqui há gato
                               resmungou o poeta
                               incapaz de fechar o soneto.

                               e como sentia
                               a lírica enferrujada
                                        libertou-se de Deus 
                                        que lhe apertava o sapato




quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

UM DEUS À MÃO (inédito)



                                 
                     Em qualquer gaveto de qualquer cidade,
              costumo deparar-me com Deus, encostado contra a parede.
              Está velho e carcomido, como carcaça de navio
              agonizante no areal. Renovo o meu comentário,     
              numa   constelação de sílabas,
              dizendo-lhe que Ele devia ter parado ao quinto dia
              na criação  do mundo. Deus encolhe os ombros
              no  silêncio do gesto derrotado,   
              e eu desando dali, movendo-me por entre a multidão
              de joelhos e braços para o Céu, implorando
              as ajudas divinas. Há um rasto de sangue,
              e uma neblina para onde converge toda
               a ferocidade do homem.                      
              Ali está Ele, tão à mão de semear e  ninguém 
               O vê.                           .

domingo, 7 de fevereiro de 2016

A UM IMPLACÁVEL DEUS





       O deus que me vigiou a infância era cruel e vingativo. À noite, de joelhos junto à cama, qual cordeiro do sacrifício, eu rezava sofregamente, atemorizado, dirigindo-me aquele Matusalém de barbas brancas e olhar iracundo.
       Tirano, era por sua decisão arbitrária que ele talvez nos oferecesse a vida eterna, junto de querubins andrógenos e ternurentos.
       A vida era esta permanente e terrível dúvida, pois ignorávamos a sua decisão salomónica: condenação ou absolvição.
          Já a tocar a idade adulta, tive que inventar outros deuses, estes mais terrenos, acessíveis e racionais, e poder seguir na vida acreditando nas capacidades de que dispunha.
             Acho que não me dei mal. PAX!


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

FEARLESS (para a Fernanda Santos)

   
 
FEARLESS
 
                               quando deste o primeiro e inseguro passo
                               não temeste as ciladas e os escolhos
                               menos ainda as rajadas do humano sarcasmo
 
                               cumprindo um rito antigo,
                               como numa irresistível pulsão de peregrino,
                               foste fazendo caminhada e carreira.
 
                               pergunto-me se estaria o caminho preparado.
                               porém, tu, munida do abecedário do arrojo,
                               tinhas-te preparado para ele.
 
                                que cobarde invertebrado,
                                poeta detergente,
                                desajeitado guerreiro,
                                                              se negará a seguir-te?
                                   
 
                    
 
 
 


quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

O ÚNICO DISPARO DE SÍLVIO SILVÉRIO

 
 
 

 
                 Por amor de uma jovem rica da sua aldeia, alistou-se como voluntário na tropa e depois na guerra colonial. De famílias pobres,  o que iria ganhar como furriel havia de lhe proporcionar o casamento com aquela a quem amava até à loucura do desespero.
           Porém, dois anos depois, quando recebeu um aerogama a dizer-lhe que a amada engravidara de outro, enfiou o cano da espingarda-metralhadora FN na boca e premiu o gatilho, sem deixar de amaldiçoar a traidora, que a levasse o diabo para o inferno.
           Sílvio Silvério suicidou-se no norte de Angola, junto às margens do rio Caiulo. Na guerra, o único tiro que disparou foi para se matar.
 
 
    

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

BALANÇO





                                                         




                                                             BALANÇO

                                 Ao abalançar-me ao poema
                                 jamais me ouvirão dizer agora
                                 jamais me ouvirão um nunca.

                                 Agora nunca será agora
                                 e o nunca não é o agora
                                 que jamais será nunca.

                                   Um poema acende a luz da eternidade
                                   que sempre foi.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

deus ou Deus?

                                                                    












                                                                   
               Se me é relativamente fácil falar da grande divindade, a coisa fia mais fino se tenho que escrever. Levanta-se a dúvida incómoda: deus ou Deus?
              A minha educação e tradição familiar impõem que grafe a inicial com letra maiúscula.  Contudo a minha idiossincrasia formada na leitura dos autores racionalistas e o meu próprio racionalismo temperado na minha vontade de observar o mundo do lado do avesso, obrigam-me a escrever a inicial com minúscula. De facto, sou um agnóstico pouco convicto, quase a entrar no ateísmo.
                Mas a verdade é que continuo a escrever Deus e não deus. Reconheço que é um disparate em quem não tem fé. É melhor assim, não vá o diabo (ou DEUS) tecê-las.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O POETA NO FIM DA LINHA



                                                      O POETA NO FIM DA LINHA
                                                                              
                                                                (a partir de uma confidência do poeta António da Silva Melo)

                     Enquanto sua mãe o espera no fim da linha, deleita-se o poeta no silêncio da catacumba. Entre relâmpagos e seios de mulheres, as angústias  que o sufocam derramam-se no papel branco onde vão nascendo versos atrás de versos, semelhantes aos ventos que enrugam as almas e secam os rios.
             Enquanto sua mãe o espera no fim da linha, os seus versos torna-se cilícios ferindo a carne, e a carne deixando exangue. A morte anuncia-se em cada flagelação, e hoje os velhos enforcam-se  nas tardes outonais, os predadores de falas invencíveis atraem as crianças.   O sopro do medo exige novos funerais .   
         Sua mãe espera o poeta no fim da linha. É a única capaz de lhe dar a absolvição.